16 de jun. de 2008

Punhos cerrados contra o racismo Wilson H. da Silva,DOUTORANDO NA USP E PROFESSOR DA UNIBAN SÃO PAULO. Na manhã de 16 de outubro de 1968, o atleta negro norte-americano Tommie Smith ganhou a prova de 200 metros rasos nos Jogos Olímpicos, sediados na ardente e rebelde Cidade do México. Seu conterrâneo, também negro, John Carlos ficou em terceiro lugar na mesma prova. Até aí, nenhuma grande novidade, já que a supremacia de negros e negras em provas de atletismo era um fato há muito conhecido e, inclusive, já havia imposto uma humilhação aos delírios racistas Adolf Hither, nas Olimpíadas de 1936. O que não se esperava, de forma alguma, contudo, era a atitude que os dois tomariam ao subir no pódio para receber suas medalhas. Tomando para si a tarefa de expressar a luta anti-racista para os milhões que assistiam aos jogos mundo afora, Smith e Carlos baixaram suas cabeças e, ao invés de cantarem o hino de seu país, ergueram solenemente seus punhos ao ar, cobertos por luvas negras, mostrando que eram lutadores do movimento "black power" (poder negro), protagonizado pelos "Panteras Negras". Num ato de extrema coragem, os dois atletas subiram ao pódio sem tênis, usando apenas meias negras (como símbolo da pobreza de seu povo). Smith ainda tinha um lenço negro ao redor do pescoço, símbolo de seu orgulho racial. E Carlos trazia na mão um rosário de contas, cujo significado ele próprio explicou mais tarde: "elas foram dedicadas a todos aqueles que foram linchados ou assassinados sem que ninguém tivesse a chance de lhes dedicar uma oração; para aqueles que foram enforcados ou cobertos por piche. Foram dedicadas a todos aqueles que foram jogados para fora dos navios, durante a travessia [do Atlântico]". A ousadia (qualificada como "uma violenta quebra do espírito olímpico...") foi punida com a expulsão dos dois dos Jogos e deportação imediata para os EUA, seu quase banimento do mundo esportivo e por um verdadeiro massacre promovido pela imprensa. Para a "infelicidade" dos conservadores e racistas de plantão, contudo, o estrago já havia sido feito. O gesto de Smith e Carlos ganhou a simpatia de explorados e oprimidos mundo afora. E por toda parte, jovens negros ergueram orgulhosamente seus punhos, desafiando o racismo em seus próprios países, internacionalizando ainda mais o movimento "Black power" e lembrando ao mundo que 1968 seria também um ano que entraria para a história da luta contra o racismo. Infelizmente, não só devido à bela e heróica atitude de Tommie Smith e John Carlos. O acirramento da luta e a morte de Luther King Para milhões de negros e negras, o ano de 1968 começou em abril, não em maio, quando, no dia 4 daquele mês, o pastor e líder do movimento por direitos civis Marthin Luther King Jr. foi assassinato, aos 39 anos, em um hotel, na cidade de Memphis, no Tenesse. O assassinato do pacifista Luther King - considerado uma voz por demais moderada por muitos setores do movimento negro - foi um lamentável indício do acirramento e da polarização do conflito racial que havia eclodido nos Estados Unidos em dezembro de 1955 com o boicote aos ônibus, iniciado em Montgomery, no racista estado do Alabama, quando Rosa Parks se recusou a ceder o seu lugar no ônibus a um branco e King deu início à sua campanha pelo combate ao racismo através da "não-violência". Turbinado pela onda rebelde e revolucionária de 1968, o movimento negro ganharia um tremendo impulso no decorrer do ano, chegando, inclusive, arrancar, de um acuado presidente Johnson, a assinatura de uma nova legislação de direitos civis que proibia a discriminação racista no acesso de negros à moradia. Uma vitória que, a exemplo das leis aprovadas em 1964 e 1967 (proibindo a discriminação nos locais de trabalho, nas eleições e nos serviços públicos), no entanto, significava apenas uma gota em meio ao mar de proibições, humilhações e restrições que cercavam a população negra. Razões mais do que suficientes para justificar a radicalização da juventude negra, seu afastamento do discurso "não-violento" de Luther King e a procura por métodos mais radicais de combate ao racismo. Se no início dos anos 1960, esta busca foi expressa no surgimento de lideranças como Malcolm X, cuja trajetória foi interrompida criminosamente em 1965; na segunda metade da década, seu símbolo maior foi, com certeza, o punho cerrado que subiu ao ar na Cidade do México. O símbolo que trazia a marca do que havia de mais radical no movimento negro no tumultuado ano de 1968: os "Panteras Negras". Garras afiadas Fundado em 1966 por Huey P. Newton, Bobby Seale e outros negros de Oakland, na California - inicialmente como uma reação à violência racista policial -, o movimento já nasceu com um nome que o diferenciava da maioria dos demais: Partido Pantera Negra para a Auto-defesa. A opção por uma organização baseada numa estrutura partidária era uma progressiva novidade que, contudo, refletia uma confusa mescla de nacionalismo negro (alimentado pelas lutas por independência que varriam o continente africano), das lições deixadas por Malcolm X, do panafricanismo e de variantes diversas do marxismo, do socialismo revolucionário e de suas distorções, como o maoísmo e o foquismo guerrilheiro. Uma estrutura, contudo, sólida o suficiente para ter transformado os "Panteras" em um grupo tão eficiente em suas ações (por mais equivocadas que muitas delas foram), que os transformaram, nas palavras do fascista diretor do FBI Edgar Hoover, na pior ameaça à segurança interna norte-americana e, conseqüentemente, nos "inimigos públicos número 1" dos órgãos repressivos. Contudo, antes de sentir a mão-de-ferro de Hoover, em 1968, os "Panteras" estavam se beneficiando da mesma onda que havia impulsionado outros movimentos mundo afora e se encontravam no auge de suas atividades. Este foi o ano, por exemplo, em que Eldrige Cleaver escreveu uma autobiografia - "Soul on ice" - que, ao contrário do que pode ser sugerido pelo título (alma no gelo), incendiou as mentes de milhares de jovens. Apoiados em uma sólida estrutura militante, o discurso do grupo ecoou fortemente entre jovens e trabalhadores negros que buscavam expressar seu repúdio contra o racismo e suas pesadas conseqüências em todos os aspectos da vida social e viram suas reivindicações refletidas nos "Dez pontos programáticos" dos "Panteras" - que incluíam a luta por emprego, melhores condições de trabalho, assistência médica, educação igualitária e de qualidade, libertação dos prisioneiros negros, mudanças radicais no sistema judicial e fim da exploração capitalista, além da não-convocação para a Guerra do Vietnã. Como também foram muitos os que se identificaram com seus métodos, que iam da criação e administração de centros médicos e educacionais a estruturas que forneciam alimentação para as crianças, passando pelo patrulhamento armado das comunidades. Durante os efervescentes primeiros meses de 1968, a organização saltou de 400 para mais de 5 mil membros, espalhados em sedes localizadas em 45 cidades e responsáveis pela venda de cerca de 100 mil exemplares do jornal "The Black Panther" - que chegou a vender 250 mil cópias no início dos anos 1970. Exemplo deste crescimento e do especial impacto que a mensagem radical dos "Panteras" causou em 1968 foi a trajetória de Stokely Carmichael, que em fevereiro daquele ano havia se tornado um dos principais dirigentes do grupo. Antes disso, Carmichael tinha liderado o "Comitê Coordenador dos Estudantes pela Não-violência" e passado por movimentos "Black Power". Pouco depois da morte de Luther King, a fala de Carmichael expressou, sem rodeios, o clima de revolta e radicalização da juventude: "Agora que levaram o Doutor King, está na hora de acabar com essa merda de não-violência". Modo bastante direto de indicar que estava partindo para um outro caminho; o mesmo, diga-se de passagem, percorrido por outra importante militante do período, a feminista e também membro do PC norte-americano, Angela Davis. Não demorou muito, contudo, para que Hoover provasse que também não estava fazendo metáforas ao indicar os "Panteras" como os principais inimigos do país. Detonando um ataque com voracidade poucas vezes vistas na já violenta história dos órgãos de repressão norte-americanos, Hoover, numa ação conjunta do FBI, da CIA e de policias estaduais e locais, desferiu sucessivos e mortais golpes contra o grupo, numa escalada que atingiu um de seus mais trágicos picos em 4 de dezembro, com a execução de Fred Hampton, que apesar de ter apenas 21 anos era o principal dirigente da organização em Chicago. Morto enquanto dormia, num ataque também feriu gravemente sua mulher que tinha nos braços o filho de 8 meses do casal, Hampton foi um entre os muitos que foram mortos, torturados, presos ou exilados. No decorrer das décadas seguintes centenas de outros foram empurrados para a mesma trilha, como é o caso de Mumia Abu-Jamal, injustamente condenado à morte desde 1981. No mesmo período, todos os principais dirigentes do grupo foram presos ou "tirados de circulação". Em 1970, Angela Davis tornou-se a mais famosa presa política norte-americana (num fraudulento processo que a manteve na cadeia até 1972); Huey foi preso, acusado de assassinato, e depois mergulhou no mundo das drogas até ser morto nas ruas de Oakland, no começo dos anos 1980; Bobby Seale também foi preso no início de 1969 e Cleaver foi obrigado ao exílio. A efêmera e irregular trajetória dos Panteras, no que se refere ao impacto do movimento de 1968 na luta contra o racismo, é semelhante ao que aconteceu em tantos outros movimentos. Por um lado, seus fracassos e revezes denunciam as contradições e limitações das organizações e lideranças que estiveram à frente do processo. Por outro, sua radicalidade foi tamanha que não só arrancou conquistas imediatas como também deixou marcas permanentes em muito mais do que a história do movimento negro e suas organizações. Penetrou inclusive na mentalidade de milhões de negros e negras. Soul: o "espírito" da negritude Num reflexo das revoluções comportamentais que também atingiam outros setores da juventude, negros e negras abandonavam massivamente o visual copiado da classe média branca e ostentavam seu orgulho racial em volumosas cabeleiras "black power", nome mais do que adequado para uma atitude que, acompanhada numa moda que mesclava negritude, africanidade e psicodelismo, era, sim, uma ousada e ostensiva demonstração de que negros e negras desejavam "poder". Um estilo que ganhou o mundo embalado pelo "black soul", a dançante "alma" ou "espírito" negro que tanto ajudou na construção de um senso de identidade e comunidade dentre os negros de muitos países, inclusive do Brasil, o que foi determinante para a formação e o desenvolvimento do movimento negro, nas décadas seguintes. Interpretados por gente como Aretha Franklin e o poderosamente irreverente James Brown, os "souls" não vinham só carregado de ginga e atitude, mas também carregavam tradições seculares e lamentos contra a opressão, coisa que ficaram evidentes particularmente na produção dos músicos vinculados à antológica gravadora Motown Records, que abrigou nomes como Stevie Wonder e Marvin Gaye.

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