3 de ago. de 2008
Vice-almirante dá sua versão sobre a Revolta da Chibata
Revista de História da Biblioteca Nacional publicou, em seu número de maio de 2008 (ano 3, nº. 32), um artigo, “Salve o Almirante Negro!”, com o subtítulo: “Marinha libera documentação sobre João Cândido, só falta anistiá-lo”. Devo esclarecer que durante os quatro anos e cinco meses em que exerço o cargo de Diretor do Patrimônio Histórico e Cultural da Marinha, nunca impedi o acesso aos documentos disponíveis no Arquivo da Marinha. Simplesmente não houve consulta sobre o assunto, em certos tipos de documentos, por pessoa devidamente autorizada pela família, como determina a lei, para preservar a privacidade.
Esse artigo também inclui diversas conclusões que, em minha opinião, não se basearam em uma análise isenta dos fatos. O motim dos marinheiros de 1910, que é mais conhecido como a “Revolta da Chibata”, foi, para a Marinha e para o País, um acontecimento deplorável. Foi um motim planejado e premeditado, que causou mortes e sofrimento a pessoas que não eram criminosas, principalmente no Encouraçado Minas Gerais – onde o líder era o Marinheiro João Candido –, que foi o único dos navios em que o líder escolhido pelos revoltosos perdeu completamente o controle da situação a bordo.
No Minas Gerais, no momento da eclosão do motim, o futuro Almirante Álvaro Alberto – que mais tarde tanto fez como cientista para o Brasil, principalmente na área de energia nuclear –, então tenente e o oficial de serviço desse navio, foi atacado por um marinheiro armado, covardemente pelas costas, e bastante ferido. O Comandante do navio foi massacrado e seu corpo, em seguida, desrespeitado, inclusive tendo um dos marinheiros urinado sobre o cadáver. Os revoltosos mataram, também, alguns de seus companheiros, marinheiros e sargento; fato em geral omitido por muitos. Alguns deles apenas queriam fugir da barbárie que se instalara a bordo do Minas Gerais, em uma embarcação.
Nos relatos favoráveis à Revolta ocorrem, em geral, graves distorções dos fatos, ofensivas às vítimas e suas famílias, como a de dar a impressão de que se tratou de uma reação imediata, justa e apaixonada. No caso, à aplicação da pena de chibata a um marinheiro que havia ferido com navalhadas um companheiro que, anteriormente, quando estava de serviço, o havia apanhado trazendo bebida alcoólica para bordo do Minas Gerais. A Marinha, lamentavelmente, havia se acomodado a esse tipo ultrapassado de punição, quando deveria ter processado, por crime militar, e possivelmente expulsado esse marinheiro. A revolta foi premeditada e aguardava uma oportunidade favorável para eclodir.
O âmago do problema foi o não acompanhamento do progresso tecnológico e social das décadas finais do século XIX e inicial do século XX, pela Marinha. As pessoas, em sua maioria, não estavam preparadas para as mudanças que ocorreram nesse período. De navios mistos com propulsão a vela e a vapor, em que se navegava principalmente ao sabor do vento, passara-se para navios de guerra semelhantes aos do início da Segunda Guerra Mundial, os encouraçados do tipo Dreadnought. Esses navios precisavam de muitos técnicos a bordo: telegrafistas, eletricistas, mecânicos, entre outros. O perfil desses novos marinheiros deveria ser muito diferente do das pessoas que o processo de recrutamento de então obtinha, que era bom para navios veleiros, em que bastava ser forte e corajoso para enfrentar as agruras da vida no mar e das manobras com as velas, no alto dos mastros, algumas vezes durante tempestades. A brutalidade do ambiente a bordo dos grandes veleiros não era adequada para esses técnicos. A chibata que era mantida, de forma equivocada, como tradição do passado, para manter a ordem nesse ambiente de brutos e até tolerada por muitos deles, que às vezes se tratavam com igual rigor, era inaceitável para os técnicos. Muitos oficiais eram contra a chibata, mas tinham seus argumentos vencidos pelos que não viam outra forma de manter a disciplina, diante do que ocorria a bordo dos navios. A Marinha custou a perceber que não podia mais aceitar recrutas com o perfil que era adequado para os tempos que haviam ficado para trás. Havia, inclusive, o habito de receber malfeitores enviados pela polícia e algumas famílias até alistavam na Marinha os filhos que julgavam incorrigíveis.
Foram os técnicos que sentiram a necessidade de rejeitar a chibata, mas, como eram novos, foram buscar líderes para o motim na “velha guarda”. A revolta foi planejada, principalmente, em reuniões que fizeram fora dos navios. Tudo indica que o principal líder foi o Marinheiro Francisco Dias Martins, do Cruzador Bahia. Foi o Bahia que içou primeiro o sinal da revolta, na noite de 22 de novembro de 1910, dando início a ela. Foi, provavelmente, dele a autoria da carta anônima assinada como “Mão Negra”, anterior aos acontecimentos de novembro de 1910, e é possível que a carta anônima de 1949 também seja dele. Nesta carta, seu nome é exaltado como o líder e é evidente a inveja do autor com relação à fama que João Cândido obtivera da imprensa.
A importância de João Cândido na revolta se limitou aos poucos dias em que lhe coube negociar a anistia. Nesse período, a imprensa lhe imputou a liderança global da revolta. Não foi dele o sinal que deu início ao motim; ele não manteve o controle da situação a bordo durante a barbárie da noite de 22 de novembro; e, depois do regresso dos oficiais para o navio, perdeu a liderança para alguns radicais que foram chamados de “faixas preta”. Ele passou a cooperar com os oficiais, pediu para que desembarcassem “faixas preta” e solicitou permissão para atirar no quartel da Ilha das Cobras quando ele se revoltou, na segunda revolta, de dezembro. Esse segundo motim parece que nada teve a ver com o primeiro e, até hoje, desconhece-se sua motivação, além de pura desordem. Sem motivos evidentes, no entanto, as autoridades aproveitaram a segunda revolta para prender os envolvidos na primeira, apesar de anistiados, e imputar-lhes novas acusações referentes ao período posterior à anistia. O Conselho de Guerra, instalado em de 25 de junho de 1912, porém, os absolveu.
Os inquéritos abertos após a revolta de dezembro, a segunda, permitem que os historiadores tenham mais documentação disponível para suas pesquisas. Na de novembro, a primeira, devido à rápida anistia que foi concedida aos revoltosos, não houve inquéritos, o que exige pesquisar em Livros de Quarto e relatos.
O episódio da morte dos presos na prisão da Ilha das Cobras é horrível. A cela é suficientemente grande – existe ainda hoje –, mas era pessimamente ventilada. A limpeza com cal virgem, que era costume na época, provavelmente não tinha a intenção de matar os prisioneiros. João Candido foi um dos dois sobreviventes.
Não consta dos arquivos da Marinha que ele foi condenado por algum crime. Foi excluído do Serviço da Armada, “por ser inconveniente à disciplina, de acordo com o Decreto nº. 8.400 de 23 de novembro de 1910”. A perseguição que sofreu posteriormente, não obtendo permissão para exercer tarefas para as quais estava habilitado, foi, no entanto, desnecessária. Existe, no entanto, uma diferença entre reconhecer um erro e aceitar um heroísmo infundado.
Armando de Senna Bittencourt é Vice-Almirante (EM-RM1), diretor da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural da Marinha.
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