29 de set. de 2010

Salles e a transposição de Abril despedaçado

O diretor Walter Salles, ao traduzir Abril despedaçado para o cinema, ancorou-se em alguns dos elementos colocados no livro homônimo. Um desses elementos é a questão da morte impulsionada pela briga entre famílias e a presentificação da tradição através do respeito ao código. Ele também re-utiliza a bessa, trégua dada entre as famílias que dura em torno de um mês e que marca as decisões burocráticas e a despedida da vida daquele que está “jurado de morte”. O nordeste é o espaço escolhido pelo diretor para desenvolver a história. A região é o cenário dos costumes tradicionais,como a disputa entre a família Breves e Ferreira. O local seco, áspero e miserável reflete a iminência da morte como anuncia o narrador-protagonista Pacu. A passagem do tempo é incorporada cenicamente através da bolandeira. O antigo objeto que no século XIX fazia a moagem da cana representa a estrutura cíclica em que os personagens estão imersos: morte – vingança – morte. Ela destitui a humanidade dos personagens (ao colocá-los lado a lado com os bois e ratificar o discurso da força),nivela-os aos animais e reproduz a prisão existencial em que estão submetidos por força da tradição e da geografia. A luz e o ambiente trágico Entre as diversas concepções que interagem com a noção de fotografia no cinema, compreendemos aqui que este elemento tem uma função dramática. A luz funciona como um marcador que condensa um caráter narrativo e estruturante da trama. Si la lumière peut être dramatisée, c’est que elle s’y prête de par nature. L’art classique va jouer d’un drame proprement ontologique (au plein sens du mot : où l’être de la lumière, et donc du cinématographe, renvoie à l’être en général, humain en particulier). A savoir une dualité, un dechirement de l’être intime de la lumière entre clarté et obscurité, doublé d’une déperdition ou perte ; (D’ALLONES, 1991, p. 99)1 Do ponto vista fílmico, o primeiro elemento do romance incorporado foi a cor: o vermelho. O frio, a aridez das montanhas e o sangue derramado (presentes no início do livro) foram sintetizados imageticamente pela seqüência da camisa pendurada no varal, flutuando ao sabor do vento, manchada de sangue. A carga simbólica da cena denota, entre outras coisas, a possibilidade de comunicação com o além estabelecida pela família-vítima. Como atesta o discurso dos personagens ao falar que o sangue amarelado na camisa é sinal de que a alma do morto não encontrou sossego e precisa ser vingada. A imagem também é uma referência às tragédias gregas, pois as “camisas ensangüentadas” aparecem como véus manchados em Oréstia, foram utilizadas pelos habitantes de Creta durante a guerra de Tróia como elementos de comunicação com as vítimas. Os gregos acreditavam que a recuperação do sangue não poderia ser realizada sem o consentimento do morto (BUTCHER, 2002, p. 112). Um outro aspecto acerca da luz no filme pode ser percebido com a utilização de sombras, representação da opressão e da falta de perspectiva em que estão mergulhados os personagens. Há ainda a presença constante de fortes contrastes – zonas de claro e escuro, utilização recorrente da escuridão. A fotografia apresenta-se árida e seca, como a geografia que cerca a casa dos Breves, áspera, em que uma parte do quadro sempre está às escuras, representando simultaneamente a presença constante da morte, mesmo de dia. Não há singeleza, os rostos e os elementos do quadro apresentam-se recortados e a escala cromática vai dos ocres ao negro denso, com alguns pontos de cor, principalmente o sangue que fotografado na cor vermelha intensa, viva. Nas seqüências realizadas no espaço interior da casa da família Breves, como a que o pai bate em Tonho, observamos que o diretor de fotografia utilizou apenas a luz do candeeiro para iluminar os rostos dos personagens. A escuridão e o tom sombrio só desaparecem da narrativa quando ocorre a ruptura no final da trama. Depois de livrar-se da opressão e do destino trágico Tonho encontra o branco, a liberdade na praia. Segundo Walter Salles, a concepção fotográfica de Abril despedaçado foi inspirada no contraste entre luz e sombra trabalhado na pintura Rildebrant, pintor viajante do século XVII, que se diferencia, por exemplo, de outro viajante por representar o choque entre claro e escuro mais violento do que em Franz Post. Portanto a violência da luz e a existência de zonas densas e escuras reforçam a presença constante da morte. 1 Se a luz pode ser dramatizada, é aquela que é emprestada da natureza. A arte clássica vai jogar articular o drama propriamente ontológico (no plano essencial da palavra: onde está a luz, e o reconhecimento da dualidade íntima da luz entre claro e escuro, duplo de uma repartição). A construção dos personagens O narrador-personagem deixa de ser o jornalista viajante e passa a ser o Menino, depois batizado de Pacu, que é apresentado como aquele que representa a voz da ruptura dentro da trama. As cenas, como a que ele discorda do pai quando este delega a Tonho a tarefa de matar o inimigo da outra família, ou quando ele imagina-se no mar representam a idéia de que a sua inocência (trazida pelo olhar infantil) aponta para o espaço da liberdade, pois ele é colocado como aquele que rompe as amarras da tradição sertaneja. Tonho é apresentado como “aquele condenado à morte”, mas que, ao conhecer o amor de Clara, encontra-se novamente com a vida. O pai, um homem rígido, opressor e rude, que busca a todo custo honrar o nome da família. A mãe é uma mulher oprimida pelo marido. Os artistas mambembes, Salustiano e Clara, representam a possibilidade de um mundo além do sertão. A cena em que os mambembes dão a Pacu um livro “com histórias de peixe”, despertando no menino a curiosidade por um outro mundo. Clara ao despertar o amor em Tonho possibilita-o de romper com o caminho que o levaria a morte e leva-o à descoberta da vida. Os personagens da família Breves carregam a sombra da morte, a violência trazida pela luta entre famílias e a vida marcada por um destino pré-determinado e fundamentalmente trágico. Na relação entre pai, mãe e filho não há espaço para diálogos, afetos e ternura. Os dois filhos são representações de personagens símbolos que traduzem a falta de identidade e a não-relação com a figura paterna. 2.2 O diálogo com o Cinema Novo O diálogo da obra fílmica com a estética cinemanovista é bastante preciso à medida que o diretor recorre a técnicas cinematográficas que se tornaram referência na produção da década de 60. Uma destas técnicas é o uso da câmara na mão, utilizada, por exemplo, na seqüência em que Tonho mata um filho da família Ferreira. Outra característica é o tratamento de temas como a violência. Do Cinema Novo: uma estética da violência, antes de ser primitiva, é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizador é um escravo; (ROCHA, 1965, p. 165) Salles incorpora alguns pressupostos da “estética da violência” glauberiana, como a questão da necessidade de ruptura para o processo de libertação, visto no filme na seqüência em que tanto Tonho, quanto Pacu desobedecem à norma, rompendo com a estrutura e a perpetuação do ciclo. A ambientação no Sertão nordestino também aponta para um diálogo com o Cinema Novo, pois o espaço é considerado simultaneamente como local da tradição e da libertação nacional. Conclusão Ao articular o discurso literário ao fílmico Walter Salles compõe uma narrativa que se aproxima em alguns momentos da obra inspiradora, viabilizando cinematograficamente questões relacionadas ao tempo (a bolandeira) e a dimensão trágica (observada na fotografia), por exemplo. Do ponto de vista da transposição do espaço, que originalmente foi representado nas montanhas albanesas, ele retoma o discurso dos cinemanovistas para respaldar a idéia de que o Sertão seria o local que possibilitaria a ruptura social e a quebra da alienação. Neste sentido, a ambientação da trama ganha um aspecto duplo e contraditório, pois representa o “local da revolução” e o espaço que determina a vida dos personagens. Do ponto de vista dos personagens encontramos algumas mudanças que apontam para uma tentativa de apaziguar o aspecto tenso do livro. Para tanto, ele troca o personagem do escritor pelo do menino e acrescenta os personagens mambembes que trarão um tom lúdico à trama. Referências Bibliográficas BUTCHER, Pedro, MÜLLER, Ana Luíza. Abril despedaçado: história de um filme. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. KADARÉ, Ismail. Abril despedaçado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. XAVIER, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a Estética da Fome. São Paulo: Brasiliense, 1983. Autor 1 Raquel do MONTE, Mestrando em Comunicação Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: rdomonte@gmail.como

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